Poemas de Maykson Cardoso
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- 12 de mai.
- 3 min de leitura
Poeta para-raio
“Desde o Prometeu do nosso tempo, o Sr. [Benjamin] Franklin, que quer desarmar o raio, até o homem que quis extinguir o fogo na oficina de Vulcano, estes esforços resultam na humilhante lembrança de que o humano nunca pode ser mais do que humano.”
— Kant, in: Prometheus der Neuzeit.
Em dias de tempestade,
você quer ver as trevas.
Abre janelas, tira sapatos
e meias, e sai pela rua
em direção ao ponto mais alto
da cidade, onde se despe
dos trapos que veste.
E lá de cima, vê as casas
tão frágeis no tempo.
E as nuvens em rebuliço:
titãs em guerra
e o céu à beira
da queda.
E debaixo da chuva, você,
que nunca nada, nunca
nada teme, canta baixinho
canções de ninar que não,
nem apaziguam a ira dos deuses,
nem embalam, no sono, os mortais
de pouca fé. E, então, com olhos
fixos no além, você se põe na ponta
dos pés,
estica braços
e dedos:
quer atrair os feixes de luz,
quer apará-los com suas mãos
pequenas
e sentir primeiro
os choques da era.
E, com seu corpo molhado,
— e a alma sedenta —,
quer conduzi-los
ao centro
da terra.
Você, tão sozinho no mundo,
entrega-se
em sacrifício
ao sacro
e vão ofício
de poeta
para-raio.
E, afinal,
desaba
seu corpo
em chagas:
um fio des-
encapado
sob o sol
que de novo
reina
no azul.
Volkspark Rehberge
Quatro instantâneos
Uma laranja no céu —
exíguo sol de outono.
Noite c o m p r i d a —
remanso dos sonhos.
O guincho dos guaxinins,
a fuçarem o lixo noturno.
Soturna, segue a raposa:
a noite inteira é de caça.
Outono em Berlim
Para Andrea Streva
É novembro:
apago luzes,
acendo velas,
e rezo a santo
nenhum: — mais
é o breu; mais,
e ninguém.
Achtung!
Azeite bem: aldrabas,
dobradiças, ferrolhos,
tramelas e maçanetas.
Sim, neste país, portas
e janelas nunca devem
ranger.
Volkspark Rehberge
Quase fim do inverno
para Rodrigo Carrijo
É tarde da noite aqui.
Uma chuva fina cai
sobre a neve fresca.
Fantasmas não muito
amigáveis tramam
no porão. No prédio
ao lado, há uma ou
outra luz acesa. Um
clarão azulado tre-
mula de uma tele-
visão. Um vizinho
espia da janela. Só
a brasa na ponta do
cigarro o revela. Ou-
ve-se um barulho de
chave. Alguém abre
e fecha um portão.
Passa, e nenhum cão
late. Os cães não latem
aqui. Mas raposas ras-
gam a escuridão com
seus gritos ásperos.
E com dentes afiados,
rasgam sacos de lixo.
Assim se fazem notar.
Quase nunca se deixam
ver. Amanhã de manhã,
nenhum canto de pás-
saro se ouvirá. Melros
seguirão à espera da
primavera, em silêncio.
E os corvos: os corvos
não cantam, nem piam.
Gralham nas ruas, no alto
das árvores. Espiam-nos
pela janela, como aquele
vizinho. Gralham também
quando lhes devolvemos
o olhar, e voam. Quando
lhe devolvemos o olhar,
o vizinho apaga o cigarro,
fecha janela e cortinas.
Há coisas tão próprias
desse lugar.
Lê-se o jardim: im Hof bei Andenbuch
Só vim ver o jarim
Não quero mastigar
as flores
—Ana Martins Marques
A hosta é uma mancha azul no jardim.
Como a alface, na horta, as hostas
são apreciadas por caracóis e lesmas
que, famintos, de noite, perfuram-nas inteiras,
oferecendo-nos suas folhas pela manhã
como um buquê de rendas portuguesas.
Na Inglaterra, aquele país de musgos, caracóis e lesmas,
disseram-me ser trabalhoso cultivar hostas:
contra as pequenas criaturas que as atacam
durante o sono, os defensivos químicos não as defendem.
Por isso, os jardineiros ingleses preferem o controle biológico
e constroem lagos artificiais para atraírem sapos e pássaros
que apreciam caracóis e lesmas, como caracóis e lesmas apreciam hostas.
O bom jardineiro, a boa jardineira, sabe que não trabalha só.
No jardim bei Andenbuch, veem-se hostas imaculadas.

Maykson Cardoso (Brasil, 1988) é poeta, crítico de arte e pesquisador. Recentemente, teve alguns de seus poemas publicados na antologia “Homem com homem: poesia homoerótica brasileira no séc. XXI” (2025), organizada por Ricardo Domeneck para a editora Ercolano. Nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, passou parte da adolescência em Tangará da Serra, no Mato Grosso, onde cursou Letras Português/Espanhol na Unemat. Em seguida, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde realizou mestrado em Estudos de Literatura na UFF. Desde 2018, vive em Berlim.
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