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Poemas de Maykson Cardoso

Poeta para-raio

 

 

“Desde o Prometeu do nosso tempo, o Sr. [Benjamin] Franklin, que quer desarmar o raio, até o homem que quis extinguir o fogo na oficina de Vulcano, estes esforços resultam na humilhante lembrança de que o humano nunca pode ser mais do que humano.”

— Kant, in: Prometheus der Neuzeit.

 

 

Em dias de tempestade,

você quer ver as trevas.

Abre janelas, tira sapatos

e meias, e sai pela rua

em direção ao ponto mais alto

da cidade, onde se despe

dos trapos que veste.

E lá de cima, vê as casas

tão frágeis no tempo.

E as nuvens em rebuliço:

titãs em guerra

               e o céu à beira

                               da queda.

E debaixo da chuva, você,

que nunca nada, nunca

nada teme, canta baixinho

canções de ninar que não,

nem apaziguam a ira dos deuses,

nem embalam, no sono, os mortais

de pouca fé. E, então, com olhos

fixos no além, você se põe na ponta

dos pés,

               estica braços

                                        e dedos:

quer atrair os feixes de luz,

quer apará-los com suas mãos

pequenas

               e sentir primeiro

                    os choques da era.

E, com seu corpo molhado,

    — e a alma sedenta —,

        quer conduzi-los

             ao centro

              da terra.

 

Você, tão sozinho no mundo,

             entrega-se

           em sacrifício

              ao sacro

            e vão ofício

              de poeta

             para-raio.

 

E, afinal,

                desaba

                seu corpo

                em chagas:

                um fio des-

                encapado

                                   sob o sol

                                   que de novo

                                   reina

                                             no azul.

 

 

 

 

 

 Volkspark Rehberge

 

 

Quatro instantâneos

 

 

Uma laranja no céu —

exíguo sol de outono.

 

Noite  c o m p r i d a  —

remanso dos sonhos.

 

O guincho dos guaxinins,

a fuçarem o lixo noturno.

 

Soturna, segue a raposa:

a noite inteira é de caça.

 

 

 

Outono em Berlim

 

 

Para Andrea Streva

 

 

É novembro:

apago luzes,

 

acendo velas,

e rezo a santo

 

nenhum:  — mais

é o breu; mais,

 

e ninguém.

 

 



Achtung!

 

 

Azeite bem: aldrabas,

dobradiças, ferrolhos,

tramelas e maçanetas.

Sim, neste país, portas

e janelas nunca devem

 

ranger.

 

 

Volkspark Rehberge

 

Quase fim do inverno

 

para Rodrigo Carrijo

 

É tarde da noite aqui.

Uma chuva fina cai

sobre a neve fresca.

Fantasmas não muito

amigáveis tramam

no porão. No prédio

ao lado, há uma ou

outra luz acesa. Um

clarão azulado tre-

mula de uma tele-

visão. Um vizinho

espia da janela. Só

a brasa na ponta do

cigarro o revela. Ou-

ve-se um barulho de

chave. Alguém abre

e fecha um portão.

Passa, e nenhum cão

late. Os cães não latem

aqui. Mas raposas ras-

gam a escuridão com

seus gritos ásperos.

E com dentes afiados,

rasgam sacos de lixo.

Assim se fazem notar.

Quase nunca se deixam

ver. Amanhã de manhã,

nenhum canto de pás-

saro se ouvirá. Melros

seguirão à espera da

primavera, em silêncio.

E os corvos: os corvos

não cantam, nem piam.

Gralham nas ruas, no alto

das árvores. Espiam-nos

pela janela, como aquele

vizinho. Gralham também

quando lhes devolvemos

o olhar, e voam. Quando

lhe devolvemos o olhar,

o vizinho apaga o cigarro,

fecha janela e cortinas.

Há coisas tão próprias

desse lugar.

 


 

 

Lê-se o jardim: im Hof bei Andenbuch

 

 

Só vim ver o jarim

Não quero mastigar

as flores

 

—Ana Martins Marques

 

 

A hosta é uma mancha azul no jardim.

Como a alface, na horta, as hostas

são apreciadas por caracóis e lesmas

que, famintos, de noite, perfuram-nas inteiras,

oferecendo-nos suas folhas pela manhã

como um buquê de rendas portuguesas.

Na Inglaterra, aquele país de musgos, caracóis e lesmas,

disseram-me ser trabalhoso cultivar hostas:

contra as pequenas criaturas que as atacam

durante o sono, os defensivos químicos não as defendem.

Por isso, os jardineiros ingleses preferem o controle biológico

e constroem lagos artificiais para atraírem sapos e pássaros

que apreciam caracóis e lesmas, como caracóis e lesmas apreciam hostas.

O bom jardineiro, a boa jardineira, sabe que não trabalha só.

 

No jardim bei Andenbuch, veem-se hostas imaculadas.




Maykson Cardoso (Brasil, 1988) é poeta, crítico de arte e pesquisador. Recentemente, teve alguns de seus poemas publicados na antologia “Homem com homem: poesia homoerótica brasileira no séc. XXI” (2025), organizada por Ricardo Domeneck para a editora Ercolano. Nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, passou parte da adolescência em Tangará da Serra, no Mato Grosso, onde cursou Letras Português/Espanhol na Unemat. Em seguida, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde realizou mestrado em Estudos de Literatura na UFF. Desde 2018, vive em Berlim.

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